Após ser preso e responder a um processo, um homem passa a investigar para descobrir o motivo de estar sendo investigado. Dirigido por Orson Welles, e indicado por ele mesmo com seu melhor filme, “O Processo”(Le Procès, Paris, 1962), baseado em livro de Franz Kafka.
A versão filmada de “O Processo” procurou ser fiel à obra de Kafka – o argumento é, sem dúvida nenhuma, kafkiano. Algumas mudanças são fruto da interpretação pessoal do diretor e da adaptação da história de 1914 aos anos sessenta; inclui-se a opção do diretor por não utilizar o final do livro no filme.
No livro, Joseph K., personagem central, conscientiza-se de que é inútil opor resistência. Sofre solitariamente a injustiça. É morto a facadas, “- Como um cachorro!”, diz ele.
Pensando nos regimes totalitários e em suas incontáveis vítimas, Orson Welles ampliou o significado da morte de K. O acusado não se rende. Os algozes, co-responsáveis, não o matam com as próprias mãos. Joseph K. espera rindo, com desdém. Uma bomba explode. Tudo muito impessoal.
Foi cortada uma cena de 10 minutos que tornaria mais fácil compreender o final. K. perguntava a um enorme computador qual seria o seu destino. Veio como resposta que K. não agüentaria, cometeria suicídio. Esta cena, segundo Orson Welles, seria uma das principais, mas foi cortada porque era cheia de humor negro e não acompanhava o espírito do filme. Mas seu intento era mostrar que K. , até o fim, foi livre para recusar o próprio destino.
O filme conta a história de Joseph K. (Anthony Perkins), um homem reservado, que vive na pensão da senhora Grubach (Madeleine Robinson) e se dá bem com todos os demais moradores do local. Um dia ele é acordado por um inspetor de polícia (Arnoldo Foà), que lhe informa que está preso, mas não o leva sob custódia. Durante o processo Joseph segue com suas atividades normais, tendo apenas que ficar à disposição das autoridades a qualquer hora do dia. Incomodado por não saber do que está sendo acusado, ele decide investigar em busca de uma resposta.
O cenário é aflitivo: a Gare d’Orsay, em Paris – de onde várias pessoas eram enviadas aos campos de concentração nazistas e onde, após desativação, em 1939, foram confinados, sucessivamente, prisioneiros da 2ª grande guerra e argelinos (só transformada no maravilhoso Musée d’Orsay em 1986) -, entrou por acaso no filme e garantiu, filmada em semi-escuridão, uma atmosfera soturna e penosa. O escritório do advogado, as salas do tribunal e os inúmeros corredores percorridos por Joseph K. foram filmados lá porque os sets de filmagem na Iugoslávia não haviam ficado prontos. A improvisação, no entanto, foi providencial.
O filme não pôde ser rodado na República Tcheca, onde Kafka era ainda um escritor banido. Diversas locações foram usadas em cenas contínuas, mixadas, de forma a criar o ambiente que Kafka descreveu, tais como a escadaria do Palazzo di Giustizia, em Roma, uma fábrica de Milão e as ruas de Zagreb, muito parecidas com as de Praga.
A atualidade do tema impressiona. O filme tem início com trecho do livro encontrado nos capítulos finais. Na cena do livro, após buscar inúmeros aconselhamentos para seu processo, Joseph K. confessa ao Capelão ser este a única pessoa em que pode confiar. O Capelão o adverte: “ – Não se engane!”. E, antes de revelar ser ele o Capelão do presídio, narra a Joseph K. parábola que simboliza os meandros da Lei. A história, contada pela voz de Orson Welles, principia “O Processo”:
“Diante da Lei, fica um guarda. Um homem, vindo do interior, pede para entrar. Mas o guarda não admite. ‘- Pode ele entrar mais tarde?’ ‘-É possível’, diz o guarda. O homem tenta olhar para dentro. Aprendeu que a Lei deveria ser acessível a todos. ‘-Não tente entrar sem a minha permissão! Eu sou poderoso! E sou apenas o mais subalterno de todos os guardas! A cada sala, a cada porta, há um guarda mais poderoso que o anterior’. Com a permissão do guarda ele senta ao lado da porta e espera. Por anos ele espera. Ele vende tudo o que tem pensando subornar o guarda. Este sempre aceita o que o homem lhe dá para que ele não sinta que não tentou. Fazendo vigília por anos, o homem conhece até as pulgas da gola do guarda. Ficando gagá com a idade, pede às pulgas que convençam o guarda a permitir a entrada. Sua visão é curta, mas ele percebe um brilho infinito ao redor da porta da lei. E agora, antes de morrer, toda sua experiência se reduz a uma pergunta que ele nunca fez. Ele chama o guarda. E o guarda responde: ‘-Você não se cansa, o que quer agora?’ ‘- Todo homem luta pela Lei’. Então, por que nesses anos todos ninguém pediu a proteção da Lei?’ Sua audição não é boa, e o guarda grita em seu ouvido: ‘-Só você poderia entrar. Ninguém mais. Essa porta foi feita só para você. E, agora, eu vou fechá-la’.
Culpa e injustiça são enquadrados, de forma concisa, fora do plano individual, como um problema difuso, coletivo. Kafka polarizara essa problemática como uma questão entre indivíduo e autoridade. As duas versões se complementam nos tempos de hoje e é por isso que irradiam genialidade.
Várias foram as leituras que se fizeram das duas obras, muitas completamente alheias ao mundo do direito. No entanto, é na área jurídica que o filme encontra lugar para encorajar reflexões da maior importância. Espalhadas no mundo, muitas universidades usam o filme como material essencial aos debates em aula. Workshops são promovidas sobre “O Processo”. Examinam-se temas como a pena de morte, a burocratização da justiça, os caminhos do direito administrativo.
Mas é perto do estudo do processo que livro e filme alcançam importância vital, muito especialmente para o processo penal. Ambos incomodam ao revelar, com bastante lucidez, que as instituições, despersonalizadas, permanecem no tempo e que a vida do homem tem duração limitada no tempo e no espaço. A longevidade, por si só, já é uma vantagem. De nada adianta a lei pairar, eterna, sobre todos, se não se considerar que a vida do homem simplesmente acaba, mesmo que ninguém se ocupe de matá-lo.