A força e a eficácia de uma determinada ordem jurídica medem-se não pela quantidade de suas leis, mas pela qualidade de seus juízes. As normas valem o que valerem seus aplicadores, já dizia Thomas Jefferson, princípio sobre o qual a nação americana deve sua grandeza (e retirado da tradição clássica dos Anglo-Saxões de que o juiz é o órgão essencial do Direito; de que é Direito o que é aplicável pelo Juiz). Inclusive não se pode afirmar conclusivamente e a priori, se uma lei é boa ou má, justa ou injusta. Tal avaliação só é possível depois que a mesma é aplicada ao caso concreto. E aí entra em cena a sensibilidade e inteligência do aplicador.
Ao brocardo romano sic lex, sic judex – “tal a lei, tal o juiz”, pode-se por esta visão cambiar facilmente por sic judex, sic lex – “tal o juiz, tal a lei”. É a qualidade do juiz que vai dizer da qualidade da lei, e não o contrário.
Se o juiz ao aplicar a lei fizer uso de recursos hermenêuticos e princípios contrários à justiça, não há lei por melhor que seja, capaz de manter-se assim na prática. O juiz pode tanto corromper uma lei “boa”, quanto aperfeiçoar uma lei “má”. No grande leito legal, cria a jurisprudência, conforme a qualidade dos juízes, veredas estreitas e intransitáveis, ou amplas vias por onde transitará a segurança e a justiça, com maior ou menor dificuldade. Quanto melhor “souber a jurisprudência adaptar o Direito vigente às circunstâncias mutáveis da vida, tanto menos necessário se tornará por em movimento a máquina de legislar. Até mesmo a norma defeituosa pode atingir os seus fins, desde que seja inteligentemente aplicada” (8). E isto porque mesmo que uma lei completamente dissociada da evolução histórica do povo seja formalmente posta em vigor, o juiz pode ao interpretá-la e aplicá-la, repô-la no curso da tradição (e no Brasil temos a vantagem de contar com a fiscalização da constitucionalidade da lei).
Uma magistratura não prescinde de ser eficiente, instruída e vocacionada, e com isso é capaz de resolver uma boa quantidade de problemas da democracia. Há até quem sustente ser a instrução dos magistrados elemento fundamental para uma boa justiça, de acordo com conhecida e repetida máxima de um antigo chanceler francês: “Prefiro mil vezes ser julgado por um magistrado venal, porém, capaz, a sê-lo por um magistrado honesto, porém, ignorante, porque o magistrado venal não faltará à justiça senão nas causas em que tiver interesse em fazê-lo, enquanto que o magistrado ignorante só por um mero acaso pronunciará uma boa sentença”.
O tino jurídico de Tobias Barreto, com base na lição de Rossirt (Entwicklung der Grundsaetze des Strafrechts), atentou para o fato de que “a liberdade deve ser protegida por outro modo, que não o simples respeito da letra da lei; porquanto, onde a independência e integridade dos juízes, a honra do soberano e da nação não são garantias suficientes de justiça, a lei é um instrumento na mão dos mais sabidos. A santidade do direito e de sua justa distribuição não pode ser posta em perigo por esta ou aquela doutrina dos juristas” (9). Efetivamente, o mero discurso jurídico, normalmente contraditório e com acentuado tom ideológico tem como função a imposição de modelos de comportamento, e por isso mesmo, não apresenta uma uniformidade capaz de salvaguardar com razoável excelência os bens fundamentais do ser humano.
A salvação de qualquer nação e a efetividade de sua ordem jurídica jazem na grandeza de sua justiça, na sua moral elevada. A barreira a qualquer intrujice do poder estatal, em seus propósitos expansivos e centralizantes, deve encontrar pronta vigilância no oráculo da justiça, regaço onde a liberdade busca confiantemente refúgio. Onde ela não funciona, onde subsistemas pessoais envolvem-na e onde interesses secundários desviam-na de sua nobre missão, o que resta é a desesperança e o domínio do arbítrio.
** Parte do trabalho “A Lei hoje” apresentado em 2006 com os colegas Afonso Henrique Rosa e Maria Antunes de Freitas à disciplina Introdução ao Estudo do Direito. Professora Juliana Lívia Antunes da Rocha.