Não obstante todos os sacrifícios, todas as leis, todos os órgãos, todos os impostos, todos os consertos e reformas, o Estado moderno não deu nenhum dos bens que inconsideradamente lhe exigiram. E tanto lhe forçaram o maquinismo, que ele por fim explodiu na crise em que se debate. Devemos, por isso, ater-nos ao que disse Tácito em tempos imemoriais: Corruptissima in republica plurimae leges (as leis abundam nos Estados mais corruptos). Efetivamente, o número exagerado de leis é sinal inequívoco de que os costumes se deterioram, pois mesmo com esta infinidade de leis, a máquina legiferante continua a girar mais que a casa da moeda em período de hiperinflação. O problema do estiolamento moral é gritante e salta aos olhos; quando os cidadãos e a sociedade são eticamente íntegros, as leis em quantidade desmesurada são desnecessárias; quando são corruptos, as leis passam a ser inúteis. A perfeição não consiste na quantidade, mas na qualidade. Tudo que é muito bom e valioso, sempre é pouco e raro. A desenfreada quantidade de leis explica-se por uma dissolução moral e perda de sensibilidade cidadã.
Países politicamente organizados e com relativa tradição democrática não reclamam novas leis, mas o cumprimento das já existentes. É este espírito de continuidade histórica, de respeito à história e de apego à tradição que falta ao Brasil. Se devemos copiar algo, que copiemos o modo de ser e de se comportar diante das rupturas, dialetizando e sintetizando novas soluções e não puros procedimentos institucionais que se mostram ineficientes, pois despidos do selo histórico. Exemplo de arraigado espírito de tradição encontra-se na Inglaterra, como nos dá conta Edward Freeman: “Em todas as nossas lutas políticas, a voz dos ingleses nunca se ergueu para pedir a afirmação de novos princípios, o estabelecimento de leis novas; o grito público foi sempre para reclamar uma melhor obediência às leis em vigor e para se repararem os males nascidos da sua corrupção ou do seu esquecimento. Até à Magna Carta ter sido arrancada ao Rei João, reclamaram-se as leis do bom Rei Eduardo; e, quando o tirano, contra a sua vontade, apôs o selo nesta obra capital, fundamento de todas as nossas leis posteriores, limitamo-nos a exigir o estrito acatamento de uma Carta que passava por não ser senão a Constituição de Eduardo sob uma forma nova. Fizemos mudanças de tempo a tempos. Mas estas mudanças foram simultaneamente um acto de conservação, porque eram um progresso; um progresso, porque conservavam” (10).
O avanço do Direito, com a inflação legislativa, representa um encolhimento da esfera da moral, sendo um índice seguro de regressão ou involução social (o fenômeno de desmobilização social que aludi acima). A passagem para uma organização social superior segue em direção inversa, pressupondo a substituição de certo comportamento jurídico por outro, moral. Efetivamente, quando os indivíduos regulam as suas relações com os demais não sob a ameaça de uma pena ou pela pressão de uma coação externa, pode-se afirmar que nos encontramos diante de uma forma de comportamento moral mais elevada.
** Parte do trabalho “A Lei hoje” apresentado em 2006 com os colegas Afonso Henrique Rosa e Maria Antunes de Freitas à disciplina Introdução ao Estudo do Direito. Professora Juliana Lívia Antunes da Rocha.