Pragmatismo legislativo

Aspecto que não pode passar sem receber sua pitada de comentários refere-se ao pragmatismo legiferante.

A lei criada pelo Parlamento é fecundada pelos casuísmos que ocorrem na praça e aproveitável pelos efeitos práticos imediatos. Raptou-se um empresário de sucesso, torne hediondo o crime de seqüestro e junte os penduricalhos que torna a pena mais aflitiva ainda. O horizonte do legislador restringe-se ao raio de ação das luzes da imprensa, que segundo dizem, representa e destila a opinião pública (não confundir com opinião publicada, “aquilo que a imprensa pensa e quer que a população pense”). Embora a imprensa não seja o único canal possível de aproximação com a sociedade, no caso brasileiro, ela com exclusividade desempenha o papel de formadora de opinião pública, pois o livro e sua leitura é uma prática incomum entre nossa população, que o utiliza apenas como adorno em sua sala de estar e não como instrumento de engenho!

Não se aplica ao Brasil o que ocorreu com o ordenamento jurídico romano, calcado e produzido em cima de uma política legislativa casuística que não obstante levou este povo antigo, apesar da grandeza reconhecida de sua ordem jurídica, a alguns desatinos verbais, incompreensíveis para a funcionalidade sistemática de hoje. Os romanos, é preciso que se diga, tinham um elevado senso de dever e de organização política, jurídica e militar, tudo guiado por uma postura pragmática de muita eficiência (7). O casuísmo romano partia de casos particulares que funcionavam como uma amostragem do que ocorria normalmente e que exigia, portanto, uma regulamentação jurídica que abarcasse todos os casos semelhantes.

No Brasil, o que ocorre é uma prática casuística em que o caso particular que enseja a produção legislativa não se repetiu nem meia dúzia de vezes, quando não tenha ocorrido apenas uma vez na mente tendenciosa, corporativa e vingativa do legislador, o que leva a ter a lei brasileira muitas vezes como instrumento de vingança. Um exemplo serve para ilustrar. No ano de 2000, no dealbar da virada do milênio, o presidente da República participou de uma feira internacional onde estavam expostos diversos stands, entre os quais um do Brasil. Muito se comentou à época (pela imprensa nacional), que o valor gasto com o referido stand, administrado por um filho do respectivo chefe de governo, não condizia com o que fora apresentado efetivamente na feira, indício, portanto, de desvio de dinheiro público. De posse destes indícios, um membro do Ministério Público instaurou um inquérito civil para apurar as supostas irregularidades. Que fez então o referido presidente? Apelou ilegitimamente para a máquina legislativa, como antes houvera, talvez, apelado para o Tesouro Nacional. Moral da história é que foi editada uma lei de natureza penal (Lei n. 10.028, de 19 de outubro de 2000) modificando o art. 339 do Código Penal que em sua redação original dispunha: “dar causa a instauração de investigação policial ou de processo judicial contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente”, e que pela nova redação passou a ter o seguinte teor: “dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente”. Pôs o presidente então uma espada de Dâmocles sobre a cabeça do promotor. Em vez de contratar um advogado, resolveu abeberar-se na fonte que apresenta solução redentora: acionou seus prosélitos parlamentares e aprovou uma lei, certamente melhor que uma sentença judicial, pois desprovida da incerteza. Pode-se, portanto, esperar do casuísmo brasileiro que reflita a grandeza legislativa de Roma antiga? Claro que não; que me perdoe o grande Tobias Barreto, mas no Brasil casuísmo é sinônimo de vingança, afilhadagem e corrupção. Por esta via, a legislação continuará a patinhar no pó do pessoalismo e da ineficácia, mantendo-se acanhada e atrasada, em nada favorecedora da democracia.

** Parte do trabalho “A Lei hoje” apresentado em 2006 com os colegas Afonso Henrique Rosa e Maria Antunes de Freitas à disciplina Introdução ao Estudo do Direito. Professora Juliana Lívia Antunes da Rocha.